Monday, June 01, 2015

Be kind, rewind.



Meu primeiro emprego propriamente dito (se você descontar a ausência de carteira assinada) foi numa locadora de vídeo situada bem no meio do mapa da cidade do Grande Rio onde eu nasci. Na começo da adolescência eu ouvi falar da inauguração de uma locadora nova e chique no bairro; grande, com direito a fila fazendo voltinhas no quarteirão porque tinha ar condicionado, um acervo gigantesco, cartãozinho de plástico com letras metalizadas e em relevo para os clientes, bebedouro com água gelada, cafezinho e aparentemente as atendentes eram gatas.

De onde concluímos que não foi nessa aí que eu fui trabalhar. Risos.

A que me empregou também ficava no centro, porém era mais modesta em termos de metragem, gêneros cinematográficos (“Cinema alternativo? A alternativa é procurar outra locadora, rárá”) e exigência estética; e se um cliente reclamasse de sede receberia primeiro um olhar desconfiado e, caso insistisse, um copo de água morna da torneira que nós, os atendentes sem cara de modelos de anúncio da Guess, pegávamos na micro cozinha - composta por 01 pia, 03 copos, 01 microondas e 01 frigobar que não gelava nada. O cartão era de papel plastificado (o plástico era fino e descascava logo) e quase toda semana alguém aparecia tentando alugar uma fita VHS com algo que lembrava uma escultura abstrata de papel machê - mas que na verdade era só o nosso cartão, depois de um ciclo na máquina de lavar roupas tendo sido esquecido no bolso traseiro do jeans.






Quando comecei a trabalhar ali ninguém falava em internet. Sabíamos que existia, mas não fazia parte da nossa realidade - assim como férias na Disney e auto-estima. Conceitos como torrents e Netflix estariam 100% em casa num episódio dos Jetsons, ou seja, futuro inimaginável. Já rolavam uns papos sobre “laser discs” que soavam como ficção científica; gênero que inclusive estava muito bem representado nas nossas prateleiras por Jurassic Park, Predador, Robocop, Alien, o Exterminador do Futuro e o genial 69: Uma Odisséia do Orgasmo.

Hein? Filmes independentes? Bom, esse aqui saiu de casa, mora sozinho e paga as próprias contas…







Quando comecei no expediente da tarde (três dias por semana) o movimento já estava diminuindo por conta da abertura da locadora chique. A esposa do patrão, em exercício de masoquismo nostálgico, gostava de apontar o fundo da loja e dizer que no passado as filas de clientes com as mãos carregadas de caixinhas de VHS chegavam até lá nas tardes de sexta e sábado. Eu nunca vi uma fila com mais de três pessoas ali, e quando fui dispensada menos de um ano depois (por não haver mais nece$$idade de manter todo aquele staff) não havia mais filas. A cada hora um cliente (ou menos) aparecia para devolver uma fita, às vezes buscar outra, às vezes apenas reclamar de que ela não havia funcionado direito ou para devolver o cartãozinho da loja - o que era desnecessário e me deixava irritada e meio triste porque eu nunca curti despedidas. “Não precisa devolver” eu respondia, metade mal humorada, metade sarcástica; “pode jogar fora ou guardar de recordação.” Um deles respondeu “eu guardaria, se tivesse uma foto sua nele” - o que foi o mais próximo que eu ouvi de uma cantada em todos aqueles meses de ócio pseudo produtivo (e mal remunerado) atrás do balcão.







Na maioria das tardes, enquanto o barulho da clientela fazendo perguntas e trocando idéias sobre os filmes ia aos poucos se transformando em ecos fantasmagóricos de um passado cada vez mais distante, a gente fazia pipoca no microondas, mandava um dos meninos comprar coca cola gelada na lojinha de conveniência do posto de gasolina (porque o maldito freezer não ia gelar nada, mesmo) e ficava assistindo fitas na TV (ok, às vezes a novela repetida no Vale a Pena Ver de Novo era melhor do que qualquer coisa do acervo que a gente ainda não tivesse visto), fazendo fofoca de celebridade antes de o Just Jared sonhar em existir e rindo dos senhores com cara de “tio pedófilo” meio encolhidos na seção de pornô - separada do resto da loja por uma espécie de biombo, que a gente apelidou de “paredão da vergonha punheteira”.







Não era pré-requisito para ser contratado, mas coincidentemente quase todo mundo ali gostava um bocado de cinema e tinha algum conhecimento útil na hora de recomendar filmes aos clientes. Não adiantava muito quando a pergunta era “qual desses filmes do Van Damme você acha o melhor?” e virou piada recomendar O Encouraçado Potemkin para a galera com cara de ter dificuldade pra entender o roteiro de Duro de Matar. A gente assistia Ruas de Fogo cantando “tonight is what it means to be young”, chorava em A Cor Púrpura, anotava citações de A Sociedade dos Poetas Mortos na agenda, tentava harmonizar O Mágico de Oz com o CD do Pink Floyd e torcia pra Andie terminar com o Steff em A Garota Rosa Shocking. Lá eu assisti pela primeira vez Asas do Desejo numa tarde chuvosa em que fiquei sozinha, sem ser interrompida pelo telefone que não tocava mais, um dia antes de ser dispensada. Associei a melancolia do filme à tristeza de ver um ritual morrendo aos poucos, o fascínio pelas TVs a cabo roubando a clientela que sempre esquecia de rebobinar as fitas antes de devolver - as mesmas que agora acumulavam pó nas prateleiras e não eram mais devolvidas com atraso e multa. As noites de sexta com cheiro de pipoca e crianças chorando porque o filme da Disney que elas queriam assistir já havia sido alugado não iam mais voltar.

A locadora fechou as portas algumas semanas depois.
A locadora chique durou mais um ano ou dois, por ter apostado também em videogames. A era dos joguinhos online acabou com ela também.

“Ainda existe locadora de vídeo? Hahaha, que lixo” um conhecido riu quando eu disse.
Eu tenho a impressão de que nunca o perdoei.



(Fotos: Borough Market, London Bridge, Green Park)

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