Wednesday, September 10, 2014

To my beautiful, tortured nemesis.

Foi só depois de alguns meses que eu deixei o Brasil em definitivo que finalmente quebrei um hábito de anos: deletar sucessivas contas de email e criar novas, para fugir de você. Eu passava horas rabiscando idéias esdrúxulas para nomes de usuário em guardanapos de boteco, páginas de revistas, livros, agendas… Até hoje quando resolvo revirar os rastros físicos do meu passado, na forma de um livro querido de infância ou um encarte de CD, eu esbarro nessas palavras (“deaddonnut”… “miss_ann_thrope”… “perfectlyhideous”…), que não fariam o menor sentido aos olhos de estranhos mas que me afundam a alma em desconforto.

Seu ódio por mim fez com que você focasse nas nossas diferenças; minha tentativa de compreender o seu ódio me fez buscar nossas similaridades. E durante esse processo eu percebi que em alguns aspectos nós éramos bastante parecidas. O dia em que chegamos usando os mesmos sapatos baratos, ainda que você tivesse dinheiro para calçar os tênis mais caros. O fato de que não nos importávamos muito com maquiagem ou cabelo. De que nunca optávamos pelos sabores mais populares na sorveteria - eu pedi jaca, você fingiu vomitar mas pediu feijão “porque era engraçado”. De que nos recusávamos a usar *qualquer* peça na cor branca durante o reveillon. Aquela tarde em que nós duas gritamos ao mesmo tempo “não tira! deixa aí!” quando alguém tentava sintonizar outra rádio no carro porque começou a tocar Joy Division. Nossas respostas assustadoramente parecidas nos cadernos de perguntas. A falta de traquejo social e inabilidade de jogar conversa fora - o lance era abrir a alma ou nada. A tola fascinação juvenil pela chuva/roupas pretas/Londres. A risada compartilhada na mesma piada ruim que ninguém mais entendeu. As opiniões vagamente controversas e o gosto pelo humor escatológico. O medo de que ele eventualmente fosse encontrar outra pessoa com quem se importar. E em meio a todas aquelas pessoas, a Solidão.

Você me disse e fez coisas horríveis. Impensáveis, hediondas, monstruosas. Coisas que poriam você na cadeia. Coisas que me fizeram questionar os níveis mais básicos de confiança nos humanos. Mas você devolveu o meu livro pelo correio e colocou um saquinho de balas na caixa - que eu, sinto dizer, joguei fora por medo de envenenamento. Você me defendeu quando me acusaram injustamente. Você me ajudou a procurar o cordão que eu perdi na piscina. Você pediu perdão (e eu fingi não perceber o seu ar de escárnio no background). Você pediu sorvete de jaca no dia seguinte. Eu não lembro se provei o de feijão.

As últimas notícias suas que chegaram a mim por contatos em comum não eram boas. Sua vida estava exatamente onde naquela última tarde eu previ que estaria: no esgoto. Com essas palavras eu virei as costas e não nos vimos mais de frente. Mas eu encontro você quase todos os dias, nas palavras cruéis dos outros onde a sua voz ainda ecoa. De certa forma eu lamento pela natureza grotesca da sua queda anunciada, mas é assim que os grandes caem: espetacularmente. Você esteve no topo e foi de lá que despencou. Impossível não machucar.

Percorrer meus arquivos online (blogs, sites, FAQs) sempre que você me descobria e deletar coisas que eu não queria que você lesse fez com que eu me perguntasse várias vezes por que diabos eu não optava pela solução mais simples, colocando senha em tudo. Era assim que eu me rebelava contra a sua perseguição? Me punindo com angústia desnecessária? E do que, afinal de contas, eu tinha medo? Dando scroll freneticamente através dos anos, me perguntando até onde você tinha chegado nos meus arquivos e o quanto já teria lido - eu estava correndo contra o insondável. E nem era como se eu realmente me importasse em apagar os supostos segredos; não é como se eles realmente fossem segredos para você. Não havia uma única frase que você já não tivesse ouvido antes - de mim, dele, dos outros. Nem um único episódio que lhe fosse desconhecido. Meu medo não vinha da vergonha, mas sim do orgulho. Eu sabia que você se lembrava de tudo; eu só não queria que você soubesse que eu me lembrava também.

Porque em pelo menos uma coisa eu queria muito que nós fôssemos diferentes. Mas bem, nós não somos.
Nós nunca vamos nos livrar do passado.

If you read this. I hope you’re well.

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Este post faz parte da blogagem coletiva “Das cartas que eu nunca te escrevi” do Rotaroots, um grupo de blogueiros saudosistas que resgata a velha e verdadeira paixão por manter seus diários virtuais. Para ler todas as blogagens coletivas do Rotaroots, clique aqui. Quer participar? Então faça parte do nosso grupo no Facebook e inscreva-se no Rotation.

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