Friday, May 01, 2009

Domingo sem Herói.

Há exatos 15 anos era um domingo e eu estava em Paquetá com meu pai. "Feriado" do dia do Trabalhador, a ilha cheia de famílias, sol a pino. Pouco antes da hora do almoço (ou depois, não lembro), um bar com bicicletas na porta e uma TV de 14 polegadas na parede transmitia a corrida de Fórmula 1. Nós paramos, não sei se para assistir um pouco ou se para comprar água. Não lembro. Lembro da notícia sendo dada por um dos homens de pé no balcão, do olhar incrédulo do meu pai e do meu próprio choque. Acidente, hospital, estado grave. Palavras difíceis que fazem o peito fechar, seja por familiares, amigos e até mesmo estranhos.

Sendo filha de um apaixonado por carros (como todo brasileiro, haha), cresci habituada ao ritual domingueiro das corridas. O dia não era completo, ou melhor, só começava depois da "cena do pódio", na maioria das vezes tendo o hino nacional como trilha sonora. Depois sim, podíamos sair, a grama podia ser cortada, o almoço podia ser comido. Confesso que a religiosidade da coisa às vezes me irritava (quando como, por exemplo, eu queria uma carona); porém conformada eu acabava por me sentar diante da TV e não podia negar que a narração histriônica do Galvão Bueno e o barulho dos motores exerciam um poder pacificador sobre mim: era domingo, eu estava em casa cercada de pessoas em quem podia confiar, all was well in the world. Às vezes eu nem precisava prestar atenção; mordiscando o sanduíche de mortadela fresquinha (outra tradição dominical), só levantava a cabeça das páginas do Globo ao ouvir o nome do Senna ou quando papai vibrava com alguma ultrapassagem. E lá estava ele, reassuringly se encaminhando para a primeira posição ou mantendo-a com facilidade. All was well in the world indeed.

Eu lembro de achá-lo baixinho, não exatamente bonito mas a voz mansa e o sorriso tímido permitiam fantasiar a respeito de uma provável docilidade. Definitivamente um "cara legal" (esse conceito demodé). Sem ostentar a própria riqueza, sem frequentar festas, sem cair bêbado em esquinas ou engravidar modelos. O último dos moicanos-bacanas, na fronteira de uma época onde fazer todas essas coisas passaria a ser normal e, até certo ponto, esperado. Senna não precisava se comportar dessa ou daquela maneira; assim como todos os Grandes, o Senna era o Senna. E era mais Senna ainda ao volante, reunindo uma nação inteira naquele programa de domingo. Não apenas na minha casa, mas na casa do vizinho, do outro vizinho, em várias casas da rua, do bairro, do Brasil. Do quintal eu podia ouvir várias tevês sintonizadas no mesmo canal e famílias sintonizadas no mesmo orgulho. E na mesma certeza de que, enquanto ele estivesse nas pistas, all was well in the world.

Por isso o choque naquele primeiro de maio em Paquetá. De repente as crianças correndo, o céu azul, os balões de gás colorido, o pagode no rádio, tudo aquilo parecia inadequado. Meu pai me levou à igrejinha da ilha, vazia, e lá nos sentamos para rezar pela vida daquele que, de certa forma, fazia parte da família de todo mundo. E que saía de cena longe, num frio hospital europeu, distante dos seus, da nação adorada e dos milhões esperando que ele "saísse dessa" e voltasse às pistas semanas depois, para fazer história ainda melhor do que antes, rindo de tudo, etcetera. Mas faz parte da História que ela nem sempre termine como queremos.

Voltamos para casa na barca trazendo conosco ainda alguma esperança, impiedosamente massacrada pelo noticiário assim que chegamos. Tive que voltar à escola no dia seguinte, onde os alunos comentavam a tragédia e pareciam não acreditar. Porque os Grandes não desaparecem assim, sem alarde, numa colisão pouco espetacular. Ouvi histórias de churrascos interrompidos, de passeios abortados, de "avôs passando mal" e pais, homens feitos, soluçando em frente à tevê. A minha história não foi contada, pelo menos não até agora.

A corrida de domingo nunca mais foi a mesma. Por meses meu pai se recusou a assistir; voltou tempos depois, mas sem a mesma paixão. A F1 podia esperar pelo fim das tarefas e não havia mais impecilhos televisivos se eu quisesse sair. O que antes era quase religioso virou opção secundária. Os domingos continuaram a ser domingos, só que um pouco esvaziados de significado e expectativa. Jornal, sanduíche, almoço. Cheiro de grama e churrasco. Famílias e crianças, missa, tevês ligadas, reprises dos trapalhões, piscina, passeios de carro, futebol, preguiça. O de sempre.

All was still well with the world. Mas nele havia um herói a menos.



(1960 - 1994)

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