Escondida num canto arborizado e silencioso próximo ao epicentro do agitadíssimo East End londrino existe uma rua circular com prédios vitorianos de tijolinhos bicolores. No meio dela, sobre uma elevação cercada de degraus, há uma praça com chão de cimento e terra batida de onde se ergue um pequeno coreto.
A cinco minutos dali jovens hipsters em roupas coloridas e tênis de marca desfilam pelo mercado de Brick Lane ao som de indie music e envoltos pelo aroma de indian curry, mas a densa copa das árvores centenárias que envolvem a praça abafa o ruído das vias principais do entorno. Ali se consegue ouvir o canto dos pássaros, apreciar as peripécias dos esquilos, relaxar tomando um café e respirar ares de uma outra época.
A rua se chama Arnold Circus e é como se você tivesse virado uma esquina e entrado em outro século.
No começo esse era apenas o jardim de um convento, mas a população da zona leste não parava de crescer e ocupar espaços. Por volta de meados do século 19 a área já tinha se tornado residencial e se transformado completamente; conhecida como "a pior favela de Londres", Old Nichol era ocupada por criminosos, prostitutas e miseráveis em geral - quase 6 mil pessoas amontoadas em quartos minúsculos espremidos ao longo de meia dúzia de ruas. A mortalidade infantil na comunidade era altíssima e nos mapas da época consta como região a ser evitada por motivos de violência.
Um artigo de jornal de 1863 não mede palavras: "O limite de texto é insuficiente para descrever em detalhes um único dia de visita. Não há nada de pitoresco em tal miséria. É uma repetição dolorosa e monótona de vício, sujeira e pobreza, amontoada em porões escuros, sótãos em ruínas, quartos vazios e enegrecidos, cheirando a doença e morte.
Por volta do fim do século um padre anglicano iniciou uma campanha para arrecadar fundos e reformar a igreja, construir um clube e um pensionato. Por fim pressionou o conselho local e a prefeitura a demolir toda a favela e erguer habitações novas e subsidiadas para a classe trabalhadora. O grupo de blocos foi chamado de Boundary Estate e cada prédio tinha 5 andares, no estilo Arts and crafts e foram projetados para proporcionar luz e ar puro para os residentes.
A praça foi batizada como Arnold Circus em homenagem a Arthur Arnold, presidente do conselho; graças aos seus esforços os prédios foram construídos em alto padrão para a época. Cada bloco (ou "casa") tem um nome e seus pórticos têm estilos e cores variados.
Infelizmente a maioria dos habitantes da favela não se beneficiou das mudanças; os novos prédios da Old Nichol foram destinados aos "pobres merecedores" - os que estivessem empregados, fossem livres de vícios e pudessem se sustentar. O restante foi simplesmente transferido (expulso) para outras áreas, sem nenhum auxílio ou compensação, aumentando a superpopulação de favelas já existentes ou criando novas.
E o fato de a pracinha ter sido construída sobre uma área elevada não é apenas escolha estética. Ali embaixo estão os entulhos e escombros da favela que foi demolida.
Mais recentemente a área passou por um processo de gentrificação. Os apartamentos particulares têm grande procura e não são baratos, mas o conselho local ainda controla 2/3 dos imóveis disponíveis que continuam sendo subsidiados para as classes menos favorecidas - um mix de nacionalidades e etnias. A associação de moradores é bastante ativa na organização de eventos e tanto a praça quanto o jardim são cuidados por alunos de escolas locais. Os prédios são bem cuidados mas não foram reformados (muitas janelas e portas são originais), o que mantém o ar de "old London" da vizinhança.
As placas minimalistas das lojinhas independentes vendendo badulaques superfaturados dão um ar de modernidade chique às sete ruas que vão dar na praça - mas a arquitetura sisuda e sem firulas da Inglaterra vitoriana e os ecos de outrora em alguns detalhes preservados nos lembram de que o passado está enterrado bem ali, nos fragmentos de memória embaixo daquele coreto.
Andando pelas calçadas limpas e bem cuidadas é impossível não pensar nos habitantes da Old Nichol, na vida de privações e desconforto e no destino que tiveram pós demolição quando foram removidos de suas comunidades e escassas redes de apoio. E tudo isso soa tristemente familiar, porque o Brasil também teve o seu percurso em direção ao progresso marcado por questionáveis episódios de higienismo.
O concreto que cobre novas estradas costuma passar por cima da história de muita gente pobre, mas no caso desse pedaço pitoresco do East End uma parte dessa história é a base da estrutura. Algo pra se pensar sentado nos bancos da praça enquanto se degusta o chai latte artesanal de um café instagramável.
terminei de ler o post sentindo meu coração afundando. o lugar é lindo, mas parece que toda essa beleza não compensa quando paramos pra pensar em todo o sofrimento da população que viviam por essas bandas. queria que as coisas mudassem, sim, mas de forma diferente. será que algum dia não iremos repetir os mesmos erros? (e nisso quero dizer será que algum dia as pessoas serão tratadas com dignidade por aqueles que detém o poder?)
ReplyDeletebeijinhos
camundonguinha
Lolla, voltei pro mundo dos blogs e não podia deixar de passar aqui. Seus textos e suas fotos continuam sempre impecáveis, é uma experiência muito boa ver Londres pelos seus olhos. Achei esse lugar tão bonito, imagino que seja uma caminhada agradável por essas ruas, olhando cada detalhe!
ReplyDeleteE que história!
https://nyrtais.blogspot.com/
tão lindo esse cantinho - mas sempre o cerumano 💔
ReplyDelete(dia de post de lolla é dia feliz 😊)