Tuesday, November 09, 2010

the kindness of strangers

A sua loja não ficava, exatamente, no meu caminho. Para falar a verdade, durante todo aquele ano-e-mais-um-pouco que passei perambulando sem destino a minha pseudotropicalidade por entre os arianos na capital da baixa saxônia, eu nem mesmo tinha um caminho. Nem trabalho, estudo, ocupação, assuntos-a-resolver, nada (a falta de livros, DVDs, TV e cinema numa língua compreensível provou-se fatal). Eu mesma compunha o itinerário do dia, motivada pelo tédio e com o único objetivo de sair, por algumas horas, da frente do computador (“e da geladeira”, me lembram os seis quilos que ganhei por lá). O roteiro da caminhada era variável, mas quase nunca passava por aquela rua lateral onde não havia nada digno de interesse além de uma creche, bicicletas ordenadamente estacionadas na calçada, um bar frequentado quase que unicamente por moscas e a sua loja. Talvez nesta ordem de importância.

A vitrine chamou a atenção por combinar duas coisas que, num mundo regido pela ordem como a das bicicletas na calçada, não se devia combinar numa vitrine. Brinquedos e bebidas alcóolicas. Garrafas de vinho cobertas de poeira pontilhavam prateleiras ocupadas por bonecas feias de porcelana e móveis para as casinhas em que elas deveriam morar. Mas o que mais me intrigou foi o anúncio colado com durex no vidro e escrito à mão. Onde, segundo o google translator, lia-se: “aberto às quartas feiras, das 13h às 16h.”. Sim, uma loja que vendia bonecas e entorpecentes e que funcionava apenas três horas por semana. Um vórtex para uma dimensão muito mais interessante do que aquela onde eu estava vivendo; agendei mentalmente a visita.

Na quarta seguinte cheguei meia hora depois da abertura e pus os dois pés atrás quando, ainda na esquina, vi alguém limpando o vidro da vitrine e me dei conta de que você era um velhinho. Eu e meus arraigados preconceitos contra alemães, todo aquele background sinistro de nazismo + eugenia + frieza + obsessão por regras… Tintas em cores acinzentadas e vermelho sangue pintando um quadro muito mais ameaçador do que toda uma realidade de motoristas sorridentes que paravam na faixa de pedestres para que eu passasse, crianças bem comportadas e caixas de supermercado que iluminavam meu dia com um “Hallo!” musical. Me apeguei à lembrança dessas experiências felizes para conseguir me aproximar da loja - apesar do medo de ser atirada no forno crematório que ficaria nos fundos do estabelecimento, disfarçado de fábrica de pretzels. Me demorei de propósito fuçando uma mesinha cheia de tralhas na promoção que havia sido posta na calçada e foi aí que você chegou à porta. Saído de algum conto de natal vitoriano, blusa e colete, a barba branca e os olhinhos como duas blueberries caídas na neve. E um sorriso daqueles de fazer a gente acreditar em coisas improváveis (como blueberries no inverno, por exemplo).

Passei os melhores trinta minutos da minha estadia na Alemanha dentro daquele cômodo apertado e cheirando vagamente a mofo e vinho oxidado. A conversa fluía tão bem que levei algum tempo até perceber que você não falava inglês e eu não entendia alemão. Comecei a desenterrar expressões e palavras soltas que tinham se incrustado na minha cabeça muito antes de eu sequer sonhar em conhecer o seu país, mas a maior parte do nosso animado diálogo era composto de risadinhas e dedos sendo apontados para objetos randômicos. “Puppenhaus!!”, eu exclamava eufórica. Você fazia que sim com a cabeça, e rindo, abria a portinha da tal casa de bonecas, revelando o que mais parecia ser um puteiro parisiense, tamanha a quantidade de poltronas de veludo vermelho e abajures acesos. Eu queria saber quanto custavam as coisas e quase sempre você erguia os ombros com uma expressão impagável de “não tenho a menor idéia!” no rosto e aí caíamos na gargalhada e era preciso telefonar para a esposa em casa, descrever o objeto em questão e perguntar o preço. Rindo o tempo todo. Você não sabe, mas a sua gentileza me fez sentir menos inferior e deslocada e destruiu mais estereótipos do que dez anos vivendo na terra do Chucrute. Aqueles risos foram a música mais bonita que ouvi durante toda a minha estadia na Alemanha.

Saí da loja carregando um pequeno sofá, uma cômoda vintage em escala 1:12, um carrinho de bebê para bonecas de madeira, um pouco mais de apreço pela humanidade e ainda mais desconfiança em relação a clichês comportamentais. Semanas depois deixamos o apartamento em List e nunca mais tive outra oportunidade de voltar.

Naquele dia, enquanto eu saía da loja, você me chamou e pôs na minha mão uma garrafa pequena, coberta de gordura e pó, contendo algo que parecia vinho. Fez com as mãos um gesto que interpretei como sendo “muito bom, muito bom mesmo”, e eu confiei. A garrafa eu mantenho no sótão rosa, meu lugar favorito da casa. E, mesmo não sabendo bem o que diabos estou bebendo, tomo um gole sorrateiro sempre que alguém aqui nesta ilha de gente supostamente educada e amável ignora o meu good morning, me atende numa loja sem sorrir ou revira os olhos quando esqueço como se diz uma palavra. E aí é como se os sininhos de natal daquele conto de onde você certamente saiu (para me fazer menos solitária e ausländer) repicassem de novo em uníssono, na frequência do seu riso.

Achei que você gostaria de saber, Mr. Walter.

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